Neste artigo, Arlindo Rocha conta um pouco sobre o surgimento do Compliance nos EUA no século XIX e como ela tem sido usada no Brasil do século XXI.
A ideia do Compliance como conhecemos atualmente, não surgiu por mágica nem nasceu do asfalto. Etimologicamente, a palavra Compliance (do inglês ‘to comply’) significa: cumprir, concordar, obedecer, estar de acordo, consentir, sujeitar-se, ou seja, agir de acordo com uma norma, comando ou pedido.
Indo além da etimologia, é importante ressaltar que quando observado nas instituições públicas ou privadas, os gestores devem saber que, estar em Compliance, é estar em conformidade com as leis, normas e regulamentos internos e externos. Logo, é fundamental que as empresas estejam absolutamente conforme o arcabouço legal nas três esferas de governança: federal, estadual e municipal, pois, o Compliance representa o primeiro passo para o fortalecimento dos sistemas de integridade em qualquer instituição.
A cultura do Compliance, ou seja, a ideia de conformidade é uma construção que vem sendo aprimorada desde a segunda metade do séc. XIX até nossos dias. Especialistas na área concordam que sua gênese se encontra nos EUA. Estudos recentes realizados por Éderson Porto (principal referência para a elaboração deste artigo), que publicou em 2020, a obra Compliance & Governança Corporativa, corrobora essa tese, e sugere que ela surgiu em 1887, com a edição da Interstate Commerce Act (Lei do Comércio Interestadual).
Essa Lei criou a Agência Regulatória Federal Interstate Commerce Commission ‘ICC’ (Comissão de Comércio Interestadual), cujo objetivo era supervisionar e impor diretrizes comerciais às transportadoras, combatendo assim, o monopólio ferroviário. A ICC foi a primeira comissão reguladora dos EUA, estabelecida como resultado da indignação pública contra práticas ilícitas e abusos ferroviários.
Essa ideia embrionária ganhou força no início do séc. XX, com a Pure Food and Drugs Act (Lei Sobre Alimentos e Medicamentos Puros), datada de 1906, cujo objetivo perpassava pela proibição do tráfico de alimentos e medicamentos adulterados. Essa lei foi a primeira de uma série de outras leis de proteção ao consumidor que foram publicadas pelo Congresso estadunidense. Sete anos depois, em 1913, foi criado a Federal Reserve (Reserva Federal), primeiro órgão com poderes para estabelecer normas e regulamentações no setor bancário.
Com o Crash da Bolsa de Nova York, iniciada na chamada “Quinta-Feira Negra” (24 de outubro de 1929), houve o colapso do mercado financeiro, causando pânico no setor bancário. Esse colapso inviabilizou as medidas econômicas liberais, que apontavam o capitalismo como instrumento ideal para alcançar o equilíbrio econômico e social, sem a intervenção do Estado, tendo atingido, não só o mercado norte-americano, mas também, o europeu, o africano, o asiático e o latino-americano, convertendo-se assim, em um flagelo generalizado.
Diante da catástrofe econômica, era preciso encontrar uma saída que pudesse ajudar os mercados a recuperar sua pujança financeira. Por isso, quatro anos depois, em 1933, com o presidente Franklin Roosevelt, foi implementado o New Deal (Novo Acordo), a partir das ideias do economista John Keynes, que apontava a necessidade da intervenção do Estado na economia para garantir o bem-estar de todos. O Novo Acordo visava a recuperação econômica do setor bancário. Com ele estabeleceu-se três normas que representavam o esforço para impor regulamentação ao setor, nomeadamente: Emergency Banking Act (Lei Bancária de Emergência); Gold Reserv Act (Lei da Reserva de Ouro); e, finalmente, Banking Act of 1935 (Lei Bancária de 1935).
Logo na sequência, em 1934, foi editada a Securities Exchange Act (Lei da Bolsa de Valores), uma lei que passou a reger a negociação de valores mobiliários (ações , obrigações e debêntures) e a incorporar uma série de regras como: elaboração e publicização de relatórios corporativos; autorizações para atuar em nome de acionistas; padrões de integridade e ética a serem seguidos; registro de transações exigidos pela legislação.
Seis anos mais tarde, em 1940, foi editada a Investment Company Act (Lei da Empresa de Investimento), destinada a regular o investimento através do estabelecimento de normas de conduta. Quatro anos depois, em 1994, foi criado o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento ‘BIRD', conhecido atualmente como ‘Banco Mundial’ que destacou-se por sua originalidade entre as organizações internacionais criadas depois da Segunda Guerra Mundial, por efetuar empréstimos a países em desenvolvimento.
Na década de 1950, com a Prudential Securities Act (Lei de Títulos Prudenciais) passou a ser obrigatório a contratação de advogados para monitorar o cumprimento dos padrões de conduta pelas empresas. Na década seguinte (1960), a Lei de Títulos Prudenciais continuava repercutindo seus efeitos, quando se passou a exigir a contratação de Compliance officers. No início da década de 1970, que antecede a criação da primeira ‘Lei anticorrupção’, houve a criação da Corporate Finance (Finanças Corporativas), visando lidar com situações relacionadas a fontes de financiamento, estruturação de capital e decisões de investimento, cuja preocupação era maximizar o valor do acionista.
Em 1977, houve uma mudança de paradigma, ou seja, os EUA entraram efetivamente na ‘Era do Compliance’, com a criação da Foreign Corrupt Practices Act ‘FCPA’ (Lei Sobre Práticas de Corrupção no Exterior). Com essa Lei, o Compliance ganha abrangência e efetividade, pois passou a ser aplicável a todos os americanos e estrangeiros. Com a promulgação de novas normas em 1998, as disposições anticorrupção passaram a ser aplicadas a empresas estrangeiras.
Como ferramenta de prevenção da corrupção, a FCPA tem tido um papel importante na orientação das empresas no processo de combate à corrupção, pois, desde sua criação, tem servido de inspiração para a criação de legislações anticorrupção em diversos países, nomeadamente, no Brasil que, apesar do investimento nesse quesito, em 2020 ocupava a 106ª posição no Índice de Percepção da Corrupção ‘IPC’, representando o pior resultado desde 2012, segundo informações da Transparência Internacional.
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A década de 1980, marca a fase da expansão do Compliance para além das atividades financeiras no mercado americano. Na década seguinte (1990), vários eventos concorrem para a consolidação do Compliance, como a: Financial Action Task Forc (Força-Tarefa de Ação Financeira); Caribbean Finantial Action Task ForceI (Força-Tarefa de Ação Financeira do Caribe); criação da Comissão Interamericana para o Controle de Abuso de Drogas ‘CICAD’; e, finalmente, a fundação da Organização dos Estados Americanos ‘OEA’.
No início do séc. XX, com a falência da Enron Corporation (companhia de energia americana), devido a falha dos Controles Internos, surgiu novas normas sobre o Compliance. Oito anos depois, em 2008, devido à crise imobiliária, o então Presidente Barack Obama editou a Lei Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer (Lei da Reforma e Proteção ao Consumidor Dodd-Frank Wall Street), que estabeleceu novas agências governamentais encarregadas de supervisionar os vários componentes da lei e, por extensão, vários aspectos do sistema financeiro norte-americano.
Já na segunda década deste século (2014), foi editada a Lei Foreign Account Tax Compliance Act (Lei de Conformidade de Impostos de Contas Estrangeiras), que busca aplicar a transparência no que diz respeito às normas contábeis e tributárias das empresas, passando a adotar condutas globais através da edição da International Organization for Standardization ‘ISO: 19.600’ (Organização Internacional para Padronização), que apresenta o roteiro para o estabelecimento, implementação, avaliação, manutenção e aprimoramento de sistemas de Integridade e Compliance nas empresas.
Depois de 2016, houve a edição da ‘ISO 37.001’, que representa o primeiro padrão internacional de sistemas de gerenciamento antissuborno e fornece uma linha de base comum, que as organizações devem usar para gerenciar seus riscos de suborno e implementar padrões de Compliance. A ‘ISO 37.001’ foi absorvida pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ‘ABNT’ (NBR37001), que propôs os mesmos objetivos relativamente ao suborno, ou seja, ‘evitar a prática de suborno pelos agentes da administração pública’; e, ‘evitar a prática de suborno oficial e o suborno de particulares’.
As duas normas têm escopos diferentes. A primeira (ISO 19.600), não é certificável, e ocupa-se de todos os riscos de uma instituição, enquanto que a segunda (ISO 37.001), é certificável e passível de creditação, pois, seu foco principal são os riscos de suborno.
De 1887 até 2016 foi uma longa jornada de quase dois séculos, uma verdadeira odisseia. Essa jornada cheia de fatos e acontecimentos, consolidou progressivamente a confiança e o investimento em sistemas de Compliance que passaram a garantir mais transparência e confiabilidade nos negócios. Essa preocupação com um ambiente de negócios mais ético chegou ao Brasil, exatamente no momento em que as empresas norte-americanas começaram a exigir das filiais brasileiras a adoção de normas anticorrupção e antissuborno.
Todas as normas elencadas influenciaram positivamente o ordenamento jurídico brasileiro. A despeito da má colocação no ranking do IPC, nas últimas décadas, o Brasil vem aprimorando suas leis até chegar onde estamos. Na segunda década deste século, mais precisamente, entre 2011 e 2013, foram editadas duas leis muito importantes para o combate à corrupção.
A primeira Lei foi a no 12.529/2011 que ‘dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica’; a segunda que, efetivamente, inaugurou a ‘Era do Compliance’ no Brasil’ é a no 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), que dispõe objetivamente sobre a ‘responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências’. Os principais objetivos dessa Lei são: ‘suprir a lacuna existente no ordenamento jurídico brasileiro quanto à responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos ilícitos contra administração pública’; e, ‘atender aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no combate à corrupção’. Sendo assim, ela prevê dois tipos de sansões às pessoas jurídicas que atuarem na contramão da norma: uma de natureza ‘pecuniária’ e outra de natureza ‘condenatória’.
A Lei no 12.846/2013, que foi regulamentada pelo Decreto no 8.420/2015, em seu Art. 41, conceitua Programa de Integridade como um “conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira”.
A Operação Lava Jato, que teve início em 2014, influenciou decisivamente o surgimento do 'Estatuto Jurídico da Empresa Pública’, através da Lei no 3. 303/2016, regulamentado pelo Decreto no 8.945/2016. Nesse sentido, a Controladoria Geral da União ‘CGU’, como órgão de controle interno do Governo Federal, vem atuando no sentido de garantir o amadurecimento do sistema de Compliance no Brasil.
Por isso, a partir da Lei Anticorrupção, editou uma série de normas e regulamentações visando aprimorar os dispositivos de prevenção e combate à corrupção, nomeadamente, a Portaria no 909/2015, que ‘dispõe sobre a avaliação de Programas de Integridade de pessoas jurídicas’; a no 910/2015, que ‘define procedimentos para apuração de responsabilidade administrativa para celebração de contratos de leniência’; a no 2279/2015, que ‘dispõe sobre avaliação de Programas de Integridade de microempresas e de empresas de pequeno porte’, e, finalmente, a no 1.382/2018, que ‘dispõe sobre Programas de Integridade para Administração Pública’.
A CGU, em parceria com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária ‘ANVISA’ e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica ‘CADE’, editaram conjuntamente duas Portarias. A primeira foi com a ‘ANVISA’ (no 2/2018), e a segunda com a ‘CADE’ (no 4/2018). Ambas estabelecem ‘diretrizes de troca de informações para apuração de casos envolvendo suborno transnacional’. Ainda em 2018, a CGU editou outra Portaria (no 1.089), que regulamenta o Decreto no 9.203/2017, estabelecendo assim, os ‘procedimentos para a estruturação e execução de Programas de Integridade em 350 órgãos federais’.
Para concluir, pode-se afirmar que, o movimento que atualmente é conhecido como cultura do Compliance é o fruto do esforço contínuo para o aprimoramento do arcabouço legal internacional e nacional, por forma a responder aos anseios da sociedade comprometida com a transparência, ética, honestidade e probidade.